Não há liderança nacional para enfrentar o problema

Eduardo Mota

No artigo “A mathematical model for the spatiotemporal epidemic spreading of COVID19” (Um modelo matemático para a disseminação espaço-temporal da Covid-19”), um grupo de pesquisadores de universidades de Itália, Brasil, Espanha e Estados Unidos, sob a liderança de Alex Arenas, apresenta, com base no caso espanhol, informações muito importantes para uma apreciação dos resultados que podemos esperar do isolamento social e restrição de circulação, frente à evolução da epidemia de Covid-19.

Pode-se confrontar os dados desse artigo com o que ocorreu na China. A partir do momento da implantação do isolamento da população (tido como total), no final de janeiro, o número diário de casos novos continuou crescendo por mais duas semanas, pelo menos, até alcançar um ponto de inflexão da curva e, a partir de então, começar a cair. Daquele ponto, no início de fevereiro, até o momento em que o número de casos novos por dia chegou a quase zero, passaram-se 4 semanas. Foram, portanto, 6 semanas de isolamento total para trazer a epidemia a uma situação de controle. Isso dificilmente será reproduzido em outros países, mesmo na Europa e muito menos no Brasil.

É interessante notar nesse artigo, examinando o gráfico da figura 3, que, com 100% de isolamento da população do país, se alcançaria 100 casos por dia de terapia intensiva entre a 5ª e a 6ª semana após o pico do número de casos, o que coincide, mais ou menos, com os dados da China, talvez com uma resposta um pouco menos efetiva. Dez casos diários ou menos seria o número alcançado a partir da 8ª semana, após o ponto de inflexão da curva.

Com isolamento de 80% da população, os mesmos 100 casos seriam alcançados a partir da 7ª semana após o pico da epidemia, e menos de 10 casos, somente na 10ª semana. Portanto, somente, talvez, entre 12 e 14 semanas após implantar esse nível de isolamento, se alcançaria uma situação de controle.

O gráfico sugere que, mais do que “achatar” a curva, o isolamento de 80% ou mais da população reduziria enormemente o tempo total da curva epidêmica, até a situação de controle da doença – o que não só reduziria o impacto sobre os serviços de saúde, mas reduziria também o impacto econômico e social da doença.

Tamanho percentual de isolamento, entretanto, traz implicações importantes para a situação no Brasil. Isolar 80% ou mais da população parece quase impossível, considerando a diversidade de medidas tomadas pelos estados e municípios. Considerado isoladamente, um estado como São Paulo, se conseguisse implantar isso, poderia provocar um impacto importante na evolução da doença no país como um todo. Porém, na situação de transmissão sustentada, o impacto sobre os serviços de saúde em outros estados não seria o mesmo.

Não seria fácil, ademais, sustentar isolamento de 80% ou mais enquanto o número de casos continuasse a crescer, nas primeiras duas a três semanas, até um máximo imprevisível, antes de começar o descenso. O impacto econômico de um isolamento em elevada proporção traria também enorme dificuldade de sustentação por 7 a 8 semanas ou mais.

Examinando o gráfico, o isolamento de 60% da população prolonga a evolução da doença para além da 14ª semana a partir do ponto de inflexão. Porém, por volta desse período, ainda teríamos mais de 1.000 novos casos diários de terapia intensiva. Seria preciso esperar mais 4 semanas, se fizéssemos uma extrapolação linear da curva correspondente a 60%, com o total de 18 semanas desse nível de isolamento, para ter 1.000 casos novos ou menos.

Assumindo que o isolamento na proporção entre 60% e 80% da população com alternativa de maior viabilidade no Brasil, o tempo de manutenção desse patamar para obter resultados razoáveis ultrapassaria 4 a 5 meses, com enorme impacto econômico, social e político – ou seja, até o mês de agosto, como já comentou o Ministro da Saúde.

Caso o Brasil tivesse considerado a possibilidade de testar uma grande proporção da população, pelo menos nos grandes centros urbanos e regiões metropolitanas, poderia combinar uma estratégia de isolamento seletivo (para toda a família e contatos das pessoas positivas) com medidas de moderada redução da circulação de pessoas dentro da região e das viagens interregionais. Isso poderia reduzir a magnitude e o tempo da epidemia, a demanda pelos serviços de saúde dos casos graves e o impacto econômico.

Entre os obstáculos para o sucesso dessa empreitada estão um enorme desafio de logística e o custo da aplicação em massa do teste rápido de detecção da infecção pelo coronavírus. Porém, o que fez a Islândia, com grande número de testes, talvez traga melhores resultados, com menor impacto sobre a mortalidade e impacto econômico e social, e em menor tempo. A Coreia do Sul e a Alemanha adotaram a testagem em massa, combinada com isolamento de pessoas positivas, embora a Alemanha tenha uma rede de assistência à saúde e prevenção incomparavelmente melhor que os outros países da Europa. A testagem em massa torna-se particularmente importante agora, quando aparecem os primeiros dados sobre o relevante papel de pessoas assintomáticas ou com poucos sintomas sobre a transmissão e dispersão do vírus – pessoas que não procurarão os serviços de saúde para diagnóstico, e que só seriam identificadas se o teste fosse oferecido e realizado em massa.

Enfim, considerando a situação brasileira e as estratégias para a redução do impacto do coronavírus sobre os serviços de saúde até o momento – para além dos ainda insuficientes investimentos em tratamento especializado, que tendem a, no máximo, manter a taxa de letalidade em níveis comparáveis aos de outros países, exceto a Itália –, teríamos que conviver com grande número de casos por um longo período, e ainda com restrição de circulação de pessoas e isolamento de considerável proporção da população, com impacto econômico negativo imprevisível.

O dilema entre não comprometer completamente a já combalida economia do país e oferecer serviços assistenciais efetivamente capazes de reduzir a mortalidade dos casos graves, enquanto se reduz a incidência da doença e o tempo total da curva epidêmica, deve ter motivado o Presidente a fazer as declarações que fez nas semanas passadas.

Parece-me que, na sua perspectiva política, o crescimento negativo do PIB e o aumento do déficit fiscal que se espera para este ano comprometerão irremediavelmente os resultados da política econômica brasileira até 2022 e, possivelmente, os resultados eleitorais, considerando que todos os países também enfrentarão recessão entre este ano e o próximo.

Assim, insiste o Presidente em afirmar que, para a maioria das pessoas infectadas, a doença é apenas uma “gripezinha”, ignorando – propositalmente – que cada uma dessas supostas gripezinhas resultará em 3 a 5 casos novos, boa parte dos quais entre idosos. Ao apelar ao discurso de minimização dos impactos tanto clínico quanto epidemiológico da doença, o Presidente pretende induzir ao relaxamento das medidas de restrição de circulação e de isolamento da população para, supostamente, não comprometer a economia.

A prosperar tal discurso, o quadro da assistência médica de maior complexidade no Brasil pode ser tal que estratos de renda mais alta irão obter tratamento no setor privado, enquanto a demanda do resto da população irá comprometer a capacidade de atendimento do SUS, com mortalidade diferencial entre os dois grupos.

Exceto por iniciativas isoladas de alguns estados (Rio de Janeiro e São Paulo), têm sido tímidos os investimentos para alcançar rápido e substancial aumento da capacidade de atendimento especializado e de terapia intensiva do SUS. Uma iniciativa nacional articulada para o aumento dessa capacidade nos estados mais atingidos certamente teria alto custo em verbas federais, de modo que parte desses investimentos tem sido feita por cada estado, isoladamente. Até o momento, recursos federais têm sido postos à disposição do combate à doença através de cortes em outras rubricas do orçamento ou de verbas extraordinárias – como os recursos da Petrobrás recuperados pela Operação Lavajato.

Talvez, para os propósitos do Presidente, tenhamos chegado à situação de “quem deve morrer” por Covid-19 e quem deve manter seus empregos. A divergência entre os discursos do Presidente, de um lado, e os do Ministério da Saúde e dos Governadores, de outro, é estarrecedora. A inconsistência das medidas de restrição de circulação e isolamento social entre estados e as opiniões presidenciais indicam que não há liderança nacional para enfrentar o problema, uma vez que há intensa politização e maior interesse em outros resultados a médio prazo do que nas condições de saúde da população, sobretudo dos mais vulneráveis socialmente.

Que não se repita o que ocorreu na epidemia de H1N1 de 2009-2011, quando, somente no primeiro ano, o Brasil registrou 2.060 óbitos pela doença.

 

Eduardo Mota é epidemiologista e professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.

Leia o artigo “A mathematical model for the spatiotemporal epidemic spreading of COVID19”, de Alex Arenas e outros pesquisadores.