Ainda não se pode falar em relaxar medidas de isolamento social

Eduardo Mota

No acompanhamento da epidemia de Covid-19 no Brasil, interessa saber se as medidas de isolamento social e restrição de circulação de pessoas têm reduzido a transmissão, o número diário de casos novos e, consequentemente, o surgimento de casos graves. Isto porque a ainda limitada capacidade assistencial, sobretudo de leitos de UTI adequadamente equipados, não será suficiente para absorver uma situação de rápida expansão da epidemia, com aumento acelerado do número de casos. Isso resultará em aumento da mortalidade pela doença, como ocorreu em países como a Itália e a Espanha.

Para as condições de acompanhamento, contudo, há fatores a considerar: 1) os testes diagnósticos confirmatórios são feitos em pacientes hospitalizados; 2) ainda é incipiente o número de testes rápidos de triagem na população em geral; 3) há grande número de testes ainda sem resultados; 4) a ocorrência de casos assintomáticos, com estimativa de até 86% de infecções que não são documentadas. Decorre disso que o número de casos confirmados a cada dia é muito inferior ao que se espera que esteja ocorrendo. Com base no número de casos graves e de óbitos e a experiência internacional, estima-se que a subnotificação alcance 90%. Como já foi dito, o que se acompanha no país não é a progressão da real ocorrência de casos de Covid-19, mas, a evolução das notificações registradas.

Com esse nível de subnotificação, torna-se difícil realizar o acompanhamento da situação epidemiológica e, dessa maneira, a avaliação da efetividade das medidas adotadas. Nesse sentido, não somente há insuficiência de informação disponível para fazer a gestão das medidas, como se torna temeroso relaxar medidas nesse momento, lembrando que o resultado da intensificação da transmissão do vírus em um local só aparecerá 5 a 14 dias depois, considerando o tempo de incubação da doença. No meio tempo, as pessoas que se infectarem poderão transmitir a virose.

Diante dessa situação, o melhor a fazer é manter as medidas restritivas por mais tempo e/ou realizar testes rápidos em massa, para obter informações suficientes que indiquem, com segurança, onde, quem, quantos, como e para quê circular mais livremente e retomar atividades comerciais ou laborais. Há experiências internacionais bem sucedidas nessa direção.

Ainda assim, e talvez cedendo a pressões, o Ministério da Saúde apresentou no Boletim Epidemiológico 7 – COE Coronavírus, de 06 de abril de 2020, disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/06/2020-04-06-BE7-Boletim-Especial-do-COE-Atualizacao-da-Avaliacao-de-Risco.pdf, as seguintes recomendações:

“● A partir de 13 de abril, os municípios, Distrito Federal e Estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado (DSA), onde o número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo (DSS). Os conceitos são apresentados neste boletim.

● Os locais que apresentarem coeficiente de incidência 50% superior à estimativa nacional devem manter essas medidas até que o suprimento de equipamentos (leitos, EPI, respiradores e testes laboratoriais) e equipes de saúde estejam disponíveis em quantitativo suficiente, de forma a promover, com segurança, a transição para a estratégia de distanciamento social seletivo conforme descrito na preparação e resposta segundo cada intervalo epidêmico.

● Em todos as Unidades Federadas, o Ministério da Saúde recomenda a adoção da estratégia de afastamento laboral.”

E define, naquele Boletim, o Distanciamento Social Seletivo (DSS): “Estratégia onde apenas alguns grupos ficam isolados, sendo selecionados os grupos que apresentam mais riscos de desenvolver a doença ou aqueles que podem apresentar um quadro mais grave, como idosos e pessoas com doenças crônicas (diabetes, cardiopatias etc.) ou condições de risco como obesidade e gestação de risco. Pessoas abaixo de 60 anos podem circular livremente, se estiverem assintomáticos”.

É possível que a livre circulação das pessoas com infecções assintomáticas torne ineficaz o assim chamado distanciamento social seletivo, em especial se a livre circulação incluir viagens entre áreas e regiões que estejam em situação epidemiológica diversa.

Ressalvada a subnotificação, há outro aspecto a considerar no acompanhamento da epidemia de Covid-19. Entre março e abril, o epicentro da epidemia, localizado em São Paulo, mas com número expressivo de casos no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, mudou. A distribuição geográfica de casos e, principalmente, as áreas de expansão rápida da epidemia não são as mesmas de quinze dias atrás.

Desde o final de março, inicialmente o Ceará e depois o Amazonas tomaram a dianteira em incidência e proporção do aumento diário de casos. Mais recentemente, Amapá e Roraima, na região Norte, e Rio Grande do Norte e Pernambuco, no Nordeste, passaram a integrar o grupo de estados em situação de expansão rápida da epidemia.

Em contraste, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal passaram a apresentar menor proporção do aumento diário de casos nos últimos dias. Existe a expectativa, porém, de que ocorra a expansão para áreas periféricas e mais pobres daqueles centros urbanos, que começaram a ser atingidas mais recentemente e onde as medidas restritivas são de implementação mais difícil, tornando incerto o quadro futuro próximo.

Isso sugere que, para acompanhar a evolução da epidemia, não será suficiente examinar o número total de casos confirmados e óbitos ou a incidência e mortalidade do país, com ou sem modelagens. Será necessário analisar a situação por estado, município ou microrregião em cada estado que se apresente em ritmo aumentado de expansão, avaliando-se a capacidade instalada de assistência médica especializada e as condições de acesso. A assistência e acesso a serviços de saúde no Norte e Nordeste é pior do que nas outras regiões. Informações ampliadas poderão oferecer mais subsídios sobre que e como fazer na gestão da crise.

Ondas de incidência e de óbitos podem ocorrer em função da maior ou menor subnotificação e a depender do comportamento da epidemia em expansão para outros grandes centros urbanos e áreas de maior densidade demográfica e pobreza, bem como da saturação dos leitos hospitalares disponíveis em cada área, estado ou região.

Um exercício linear e simplificado do que pode acontecer em cada local, tal que possibilite avaliar acertos e desacertos na aplicação de medidas de isolamento social e restrição de circulação, resulta do acompanhamento por estado da proporção diária do aumento do número de casos. Porém, novamente, ressalvada a subnotificação.

Suponha que o percentual de aumento diário do número de casos permaneça constante ou varie pouco no tempo, em cada situação. Para cada categoria de aumento percentual corresponderá o tempo aproximadamente necessário para que se alcance o dobro do número de casos, como se apresenta no quadro a seguir. Quanto maior esse prazo, mais lenta será a evolução da epidemia, possibilitando melhor assistência aos pacientes mais graves.

Isso é particularmente importante quando se verifica que o tempo médio de permanência em UTI para pacientes com Covid-19 é maior do que o habitual, podendo alcançar 14 dias em média.

E a proporção do aumento diário de casos confirmados, um indicador do ritmo de evolução da epidemia, dependerá também da cobertura das medidas restritivas, supondo que alcance, pelo menos, 50% a 60% da população. Há diferenças importantes entre estados nas estimativas da proporção da população em isolamento/distanciamento social, mas estamos longe de alcançar o mínimo desejável.

A partir disso, pode-se examinar a média do aumento percentual diário de casos confirmados nos últimos cinco dias e o percentual de aumento observado no dia 10 de abril em relação ao dia anterior, por estado, como se apresenta no quadro a seguir:

Nota-se que os estados da região Norte têm médias elevadas de aumento diário nos últimos cinco dias, assim como os estados do Ceará e de Pernambuco. Porém, a variação diária é considerável.

Com base nisso, considerando que o percentual de aumento verificado em 10/04 se mantenha nos próximos dias, há estados em franca expansão, isto é, com aumento atual muito maior do que a média recente, e há estados em situação estável.

Por exemplo, São Paulo apresentava, no dia 03/04, a metade do número de casos do dia 10/04; o Rio de Janeiro tinha a metade do número atual em 04/04, portanto, há 6 a 7 dias, com proporção diária de aumento entre 10% e 12%. O Distrito Federal tinha metade do número atual de casos em 29/03 e apresenta, com certa estabilidade, uma das menores proporções de aumento diário de casos. O Amazonas tinha metade do número atual no dia 06/04 e tem média diária de aumento percentual superior a 15%.

São tantos os processos epidêmicos de Covid-19 no país quanto são vários, diversos e desiguais os nossos ditos brasis. Trata-los como uma unidade epidemiológica é tão enviesado quanto será prescrever, por algum critério mágico, distanciamento ampliado ou seletivo para qualquer local, imaginando que o novo coronavírus respeitasse fronteiras, decretos ou portarias, quando se trata de circulação de pessoas.

Sem informação epidemiológica qualificada e instrumentos mais precisos de monitoramento para subsidiar decisões, seguimos quase às cegas, com recomendações que cumprem objetivos outros que não os que ofereçam segurança aos grupos de risco e reduzam a mortalidade, no aguardo de que cheguem a tempo os equipamentos, leitos, profissionais e infraestrutura suficientes para salvar vidas.

 

Eduardo Mota é epidemiologista e professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.