Sem registro na carteira, eles não têm direito a FGTS, licença maternidade ou qualquer auxílio do governo em caso de desemprego. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último trimestre de 2019, os trabalhadores informais brasileiros representam 41% dos postos de ocupação. Na Bahia, o percentual da informalidade salta para 51%, ou seja, são quase 3 milhões de trabalhadores, que agora enfrentam um outro problema: maior vulnerabilidade para infecção pelo novo coronavírus.
“Os trabalhadores informais prevalecem entre os vendedores ambulantes, feirantes, no comércio de rua de alimentos, vestuários e artesanatos, serviços por aplicativo e, portanto, podem ter maior risco de doenças transmissíveis pelo ar e superfícies contaminadas, como a covid-19”, destaca Cleber Cremonese, professor e pesquisador do Programa Integrado em Saúde Ambiental e do Trabalhador (PISAT) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA).
Com alta transmissibilidade pelas gotículas liberadas na tosse e mesmo durante a fala, o SARS-Cov-2, vírus causador da atual pandemia de Covid-19, pode permanecer ativo por muito tempo em superfícies diversas. Mesmo aqueles não-sintomáticos também podem transmitir o vírus através do contato com outras pessoas ou com materiais contaminados.
Segundo o professor, várias ocupações estão em situação de risco no momento, independentemente do vínculo formal ou informal, mas as consequências da doença sobre a vida, a família e a sociedade serão diferentes para cada grupo de trabalhadores.
“Trabalhadores formais, quando infectados ou acometidos pela Covid-19, estarão cobertos pelos benefícios de compensação previdenciários (auxílio doença) ou acidentários (relacionado ao trabalho) e pelas garantias trabalhistas vigentes. Mas os informais estarão sem proteção para o desemprego ou para a perda expressiva de ganhos no trabalho”, avalia. A situação é menos crítica para aqueles que contribuem com a Previdência Social, sob a condição de trabalhador autônomo ou microempreendedor individual.
Riscos e cuidados
A maioria dos trabalhadores informais está classificada como de médio risco de infecção pelo novo coronavírus, segundo nota técnica do Comitê Estadual de Emergências em Saúde Pública. São feirantes, agricultores, ambulantes, manicures, cabeleireiras, trabalhadores de serviço de alimentação, de aplicativos, motoboys, mototaxistas ou qualquer outro trabalhador que exerça atividade em contato próximo com pessoas potencialmente contaminadas.
No cenário de isolamento social, muitos feirantes e agricultores, por exemplo, continuam trabalhando não só para garantir a própria sobrevivência, mas o fornecimento de alimentos à população. “São eles que garantem acesso de forma rápida, com menor custo e relativamente próximos a muitos lares, na rua ou bairro de cada um de nós”, destaca Cremonese.
Diante desses riscos, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG) desenvolveu uma cartilha com orientações de prevenção à Covid-19 voltada, exclusivamente, para os feirantes. As recomendações incluem montagem de barracas à distância mínima de três metros uma da outra e proteção dos produtos com embalagens individuais ou alguma forma de barreira física geral, como um plástico transparente sobre os produtos expostos.
“A recomendação fundamental é a proteção individual de todos os feirantes com uso de máscaras, óculos e touca, além de frequente higienização das mãos com álcool gel”, alerta o professor.
O ramo alimentício formal também tem se servido, cada vez mais, de trabalhadores informais, como motociclistas e ciclistas, para garantir as entregas e, portanto, o fechamento do ciclo de negócio. Nesse caso, a quebra da cadeia de transmissão do vírus só pode acontecer se ambos os lados, cliente e entregador, realizarem ações de cuidado de proteção e higiene pessoal. “Os entregadores, por exemplo, precisam utilizar todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como máscara, óculos e touca descartável”, observa o professor.
Também é recomendável evitar contato com dinheiro, priorizando o pagamento on-line dos clientes, assim como a entrega das encomendas em portarias, quando possível, ou manter uma distância de 1,5 metros entre entregador e cliente. A higienização das mãos com álcool em gel, a cada entrega realizada, é indispensável.
“Ciclistas e motociclistas devem higienizar capacetes (por fora e por dentro), luvas e guidão/punho com sabão neutro ou álcool em gel, com frequência, de uma a duas vezes ao dia, dependendo da carga de trabalho. Na dificuldade de encontrar torneiras, água e sabão, o tubo de álcool em gel a 70% é o item indispensável e deveria ser fornecido pelos empregadores sempre”, completa.
Senso de oportunidade
Segundo a PNAD, em julho de 2019, aproximadamente 4 milhões de brasileiros tinham como fonte de renda, parcial ou total, a prestação de serviços por meio de aplicativos (app) de transporte, entrega de produtos ou alimentos. “Percebendo o cenário econômico atual, este número pode estar entre 5 ou até 6 milhões de trabalhadores. São pessoas que encontraram um caminho para conseguir uma remuneração, mesmo sem as mínimas garantias”.
Para Cleber Cremonese, a pandemia evidencia diversas vulnerabilidades entre esses trabalhadores informais de aplicativo, como longas jornadas de trabalho, grande esforço físico, risco de acidentes de trânsito, estresse e ausência de garantias de proteção do emprego ou de benefícios da proteção social. “Sem orientações ou capacitações sobre como devem proceder, somando à possível falta ou manuseio errado de máscaras e óculos, tornam-se um grupo de alto risco de infecção durante as atividades de trabalho”, aponta.
O distanciamento social também tem criado alternativas de negócios informais dentro de casa, como a produção de máscaras caseiras, que passaram a ser alternativa mais viável diante da obrigatoriedade de utilização e consequente escassez do produto nas farmácias e lojas especializadas. “A criatividade e a capacidade de adaptação em relação às demandas do mercado são as principais armas dos trabalhadores informais. Isso apenas exemplifica o dinamismo próprio do trabalho informal, com novas estratégias diárias ou semanais, de modo a garantir uma renda mínima para sua sobrevivência e de seus familiares”, avalia o professor.
Auxílio e distanciamento
Em virtude da pandemia do novo coronavírus, o governo federal aprovou um auxílio emergencial de R$ 600, por três meses, destinado aos trabalhadores informais brasileiros. O valor começou a ser liberado no dia 9 de abril pela Caixa Econômica Federal. Dos 92,8 milhões de CPFs analisados pela Dataprev (até o dia 28 de abril), 50,3 milhões são elegíveis para receber o valor. Um dos requisitos é não ter carteira assinada.
“O benefício não garante o distanciamento social, tampouco fará com que os trabalhadores deixem de tentar realizar suas atividades de trabalho”, aponta o professor. A dificuldade, segundo ele, pode estar na falta de reservas econômicas mínimas pelos trabalhadores e o alto índice de endividamento, como parcelas de cartão de crédito, prestações de casa, veículos ou móveis.
A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), indica que 65% das famílias brasileiras estavam endividadas em dezembro de 2019.
Para o professor, o auxílio garantido pelo governo federal permitirá, de maneira mínima, a aquisição de alguns itens de alimentação básica e produtos de higiene. “Com a falta de outras estratégias de suporte a médio ou longo prazo, a tendência é observarmos um crescimento no retorno desses trabalhadores às atividades”.
Na avaliação dele, a situação atual desses trabalhadores é resultado de um longo processo de precarização do trabalho, que se agravou com a lei das terceirizações (Nº 13.429/17), a reforma trabalhista (13.467/17) e a reforma da previdência (EC 103/19). Para a mudança de cenário, é preciso investir em políticas públicas que os projetam e garantam direitos, inclusive para aqueles trabalhadores que não têm uma assinatura na carteira.
“O trabalho informal mantém vivos cidadãos que compõem uma parte importante para a economia do nosso país. E que é, sobretudo, vital, ao permitir o mínimo de conforto e a provisão de necessidades básicas de todos nós”, conclui.