Em quatro anos, o consumo de vídeos na internet aumentou 135%, boa parte dele realizado dentro do Youtube — plataforma preferida dos brasileiros para acessar conteúdo em vídeo. Dentre as motivações das pessoas para acessar o site estão a busca por conexão com outras pessoas, o entretenimento e o conhecimento. Mas e quando esse conhecimento é produzido por canais que se utilizam da desinformação para promover interesses próprios, políticos e econômicos?
A problemática foi identificada pela pesquisa “Ciência Contaminada — analisando o contágio de desinformação sobre o coronavírus via Youtube”, primeiro relatório do projeto Democracia Infectada, realizado a partir de uma parceria entre o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut, uma ONG independente), o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.CC) – este último com sede na Faculdade de Comunicação da UFBA.
A pesquisa analisou a forma de disseminação e teor de vídeos que promovem a desinformação sobre a Covid-19 no país, buscando identificar as redes em que se propagam esses conteúdos, os vocabulários e argumentos associados a eles, bem como os interesses por trás de cada material. Foram analisados 11.546 vídeos sobre o tema, com o auxílio de algoritmos que percorreram os vídeos relacionados ao termo “coronavírus” e os resultantes da recomendação de cada exibição. A partir disso, foram gerados dados sobre o conteúdo de cada um deles, possibilitando uma análise qualitativa pelos pesquisadores.
Nina Santos, pesquisadora do INCT.DD e professora da Faculdade de Comunicação da UFBA, fez parte da equipe responsável pela pesquisa, junto com os pesquisadores Caio Vieira Machado, Daniel Dourado e João Guilherme Santos. Nina explica que, a partir da análise dos dados, foi possível identificar três redes coesas, com vocabulários específicos e campanhas relevantes de desinformação. Essa identificação ajudou a entender em que se baseia a propagação de notícias e informações falsas ligadas ao coronavírus no Youtube.
“As três redes se baseiam em diferentes discursos em relação ao coronavírus, que são, no mínimo, enviesados. Esses discursos desconsideram as recomendações oficiais que estão sendo feitas pelas agências nacionais e internacionais de saúde. Suas falas distorcem informações científicas e possuem interesses diversos por trás, como políticos, econômicos, e pessoais, na busca por de legitimar determinado indivíduo como uma autoridade no tema”, afirma Nina Santos.
A pesquisadora também explica a importância de analisar o fenômeno e os riscos que ele pode causar ao combate à doença. “A única coisa que podemos fazer para evitar a difusão do vírus e diminuir a sua mortalidade são as medidas comportamentais. Mas, uma vez que se divulgam informações falsas, há um impacto direto na forma como as pessoas vão se comportar em relação à pandemia”, acredita.
Duas das três redes são mais próximas em suas temáticas. A primeira delas traz narrativas de cunho geopolítico, culpando a China pela produção do vírus como arma biológica. A segunda, de cunho religioso, enquadra a pandemia num contexto de simbologia bíblica, caracterizada como uma praga divina ou parte do apocalipse. Nos dois casos, há o endosso de recomendações que contrariam comportamentos estimulados pelas comunidades médica e científica.
A terceira rede é centrada na figura de médicos para quem o coronavírus virou oportunidade de negócio. A pesquisa encontrou evidências de tentativa de monetização do conteúdo sensacionalista, além da oferta de produtos que prometem alguma forma de proteção contra a doença “À primeira vista, a existência desses canais de médicos poderia parecer uma boa notícia. No entanto, identificamos que esses profissionais dão recomendações que desconsideram o propagado pela OMS. Eles insistem na questão da imunidade, como se uma boa defesa bastasse para prevenir a doença, e usam esse argumento para vender produtos, como cursos, e-books, vitaminas e complementos alimentares”, descreve Nina.
Em comum às três redes identificadas pela pesquisa, além do teor desinformativo e de rejeição à ciência, está a presença de lideranças políticas, religiosas e médicas que possuem certa autoridade perante o público ao qual se dirigem. A rede de cunho religioso, por exemplo, tem como caso relevante a figura de um grande líder de igreja pentecostal que realiza leituras seletivas, parciais e descontextualizadas dos dados científicos, desacreditando a gravidade do coronavírus entre a população. Seu canal acumula mais de um milhão de seguidores.
“No processo de propagação de uma fake news ou desinformação, um dos elementos importantes é a quantidade de vezes que aquela informação é repetida. Todas as pessoas que vão replicando o conteúdo são importantes nesse processo de tornar real algo falso. No entanto, essas pessoas não têm um papel central como as lideranças que identificamos em cada comunidade, seja do médico, seja do líder religioso, seja da figura política”, explica a pesquisadora.
Contrapondo-se às três redes propagadoras de informação falsa, está a rede de vídeos relacionada ao tema coronavírus que reúne os canais jornalísticos e de informação. Na amostra, estão vídeos classificados como de notícias e de política, com conteúdo produzido por meios de comunicação tradicionais ou programas de comentários e entrevistas que trazem informações científicas sobre a doença. O nível de desinformação encontrado nessa rede foi substancialmente menor que o encontrado nas outras redes: 4,8%. De acordo com a pesquisa, a circulação de vídeos advindos dos meios de comunicação tradicionais é relevante e constitui um reduto de informação importante em meio a um complexo ecossistema de desinformação.
A plataforma Youtube tem realizado ações para para coibir conteúdos que propagam desinformação relacionada ao coronavírus, retirando os vídeos do ar. “Apesar da atitude, claramente a ação é insuficiente, porque há uma quantidade grande de informações falsas circulando na rede. Também me parece algo complicado, em termos democráticos, atribuir exclusivamente às plataformas essa tarefa. Deve haver um cruzamento de ações mais complexas, das legislações dos países e dos estados, que devem estabelecer o que é ou não informação falsa, além da ação dos fact checkers”, afirma Nina Santos.